Citizen Kane (filme) e a personalidade narcísica
- o pátio - comunidade
- 1 de abr. de 2018
- 3 min de leitura
Atualizado: 17 de nov. de 2019

Citizen Kane (Orson Wells, 1941), considerado por muitos o melhor filme de sempre, retrata a vida e o legado de Charles Foster Kane, um magnata da imprensa com uma fortuna de valor incalculável. A história é contada através da investigação de um jornalista sobre a última palavra que Kane terá dito antes de morrer sozinho no seu quarto – “Rosebud”. Ainda que elogiado, sobretudo, pelas suas inovações técnicas sem precedentes para a época, é a profundidade psicológica que se destaca. Mesmo antes do rótulo “Perturbação da Personalidade Narcísica” surgir, pela primeira vez, com Heinz Kohut (psicanalista austro-americano), em 1968, Wells oferecia-nos o retrato de um homem genial, mas com graves dificuldades em expressar empatia e uma enorme avidez pela atenção dos outros.
Kane nasceu de uma família de trabalhadores numa simples pensão no Colorado. Quando a mãe de Kane enriquece ao receber a escritura de uma mina como forma de pagamento por parte de um inquilino, resolve entregar Kane a um banqueiro milionário que o cria sozinho no meio de muito dinheiro. As razões para a decisão são claras: uma mãe emocionalmente instável e um pai violento. Estes aspetos tornam-se pistas para a personalidade de Kane e para as suas dificuldades posteriores.
Em adulto, ao assumir a gestão do The New York Inquirer, Kane passa a denunciar as injustiças sociais e a falar em nome do povo, alimentando o seu narcisismo através da generosidade. “Falas sobre «as pessoas» como se te pertencessem (…) sobre «dar às pessoas os seus direitos», como se lhes pudesses dar a liberdade como recompensa pelos seus serviços”, diria o seu melhor amigo, Leland. Sem dúvida, uma das melhores descrições da grandiosidade narcísica de uma personagem do cinema.
Kane casa-se com uma mulher que alimenta a sua autoimagem idealizada, como é habitual nos indivíduos narcísicos, e ama-a até a admiração que ela sente por ele se desvanecer. Numa cena extremamente bem-conseguida à mesa, pode ver-se a idealização de ambos tornar-se, de forma progressiva, em alienação e desprezo mútuos. Quando conhece a sua segunda esposa, Susan, Kane parece mais interessado no facto de ela gostar dele mesmo sem o (re)conhecer. Ao falhar em tornar Susan numa estrela de ópera contra a vontade da própria, Kane sente a falha como vergonha e como ferida narcísica, culpando «os outros». Ora, a culpa é um dos mecanismos de defesa principais contra a vergonha, preservando o self de se sentir agredido.
Como uma possível forma de reforçar o seu autoconceito, Kane manda construir uma residência apenas igualada pela sua própria megalomania – Xanadu, a maior propriedade particular já construída na América. E enche-a com obras de arte que foi colecionando sem limites ao longo da vida. Kane e Susan vivem imersos neste enorme palacete quase sem contato, as vozes ecoam e são distorcidas pelo vácuo, a comunicação torna-se difícil, como uma metáfora perfeita para as relações "vazias" com os outros que os indivíduos narcisistas tendem a desenvolver.
Já muito velho, quando entrevistado acerca da vida de Kane após a sua morte, Leland dá-nos um dos maiores insights sobre a personalidade de Kane e, enfim, sobre a Personalidade Narcísica: “Suponho que ele tinha uma espécie de grandiosidade secreta, mas que guardava para ele. Ele nunca se dava. Nunca deu nada, ele apenas… te deixava uma gorjeta. Tinha uma mente generosa. Não me parece que alguém tenha tido tantas opiniões. Mas ele nunca acreditou em nada, exceto em si mesmo. Nunca teve uma convicção exceto em si mesmo e na sua vida. Suponho que tenha morrido sem uma convicção (…). Claro que muitos de nós morremos sem ter nenhuma convicção em particular sobre a morte, mas sabemos o que deixamos. Acreditamos em alguma coisa”.
Kane não acreditava em nada a não ser em si. Passou a vida a desejar narcisações consecutivas que falharam precocemente, faltando um sentido interno de valor e de significado da vida. E morreu sozinho. Tal como muitos indivíduos com uma estrutura narcísica da personalidade, Kane teve dificuldades na capacidade de amar e de formar relações significativas. Toda a sua vida se baseou em ganhar admiração e reconhecimento. Uma possível interpretação é que “Rosebud” foi a infância perdida que mudou todo o seu percurso. “Tudo o que ele queria da vida era amor. Essa é a história do Charlie – como o perdeu.”, diria Leland.
Na origem de uma estrutura narcísica tem-se encontrado fatores genéticos, ambientais, sociais e também problemas de vinculação com as figuras primárias, geralmente os pais. Kane viu-se obrigado a crescer sem os pais, num mundo socialite e, após a sua morte, o seu legado parece viver apenas das memórias daqueles que o acompanharam de perto -- o melhor amigo, a ex-mulher, o fiel Bernstein. Mas por mais que vejamos o filme, nunca ficamos realmente a conhecer Kane, tal como muitas vezes acontece com os indivíduos narcísicos. O que torna o argumento tão real e emocionante é o facto de Kane ser um cidadão comum, com uma história que poderia ser a de qualquer um de nós.
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